quarta-feira, setembro 13, 2006

A Tutela Jurídico-Penal das Relações de Consumo



Por Aleksandro Clemente

A TUTELA JURÍDICO-PENAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Sumário: 1.1. Evolução histórica da proteção do consumidor; 1.2. Bases Constitucionais; 1.3. O modelo de micro-sistema com normas de ordem pública e de interesse social; 1.4. Crimes contra as relações de consumo em outros diplomas legais; 1.5. A polêmica em torno da tutela penal nas relações de consumo. 1.6. Conclusão.
_____________________________________________________________________________________

1.1 - Evolução histórica da proteção do consumidor

Desde os tempos mais remotos, sempre ouve quem fabricasse ou vendesse alguma coisa e quem a comprasse. Ocorre que, até o século XVIII, as relações comerciais eram mantidas basicamente entre o artesão e o comprador, sendo que este adquiria a mercadoria diretamente daquele e em quantidade suficiente para a satisfação das suas necessidades. Em regra, se o comprador se sentisse lesado pelo vendedor entendia-se diretamente com ele. Em outras palavras, as transações comerciais eram mais simples e marcadas pela individualidade[1].

Com o advento da Revolução Industrial, já na segunda metade do século XVIII, o surgimento das fábricas e a produção e comercialização de bens em larga escala foi tornando as relações comerciais cada vez mais complexas. Inseriu-se uma série de intermediários entre o fabricante e o adquirente final do produto. A prestação de serviços também se aperfeiçoou e a publicidade foi se tornando cada vez mais ostensiva, com vistas a convencer as pessoas a consumir e a contratar, influenciando, assim, na mudança de hábitos da sociedade. Era o começo do que hoje chamamos de sociedade de consumo.

Neste mesmo período surgem as idéias do liberalismo econômico, cujo principal pensador foi o escocês Adam Smith, para quem o Estado não deveria intervir nas relações econômicas, mas deixar que o próprio mercado ditasse suas regras[2]. Acontece que com o passar do tempo, o poder econômico e organizacional dos detentores dos meios de produção foi pouco a pouco sufocando os consumidores, os quais, vulneráveis, passaram a sofrer inúmeros prejuízos com a inserção no mercado de bens e serviços de péssima qualidade, que colocavam em risco a saúde, a dignidade e a própria vidas das pessoas.

Diante dessa realidade, tornou-se imprescindível a intervenção do Estado na economia a fim de corrigir distorções e restabelecer o equilíbrio nas relações comerciais. Desta forma, no começo do século XX, surge o modelo que temos hoje, o da intervenção no domínio econômico, no qual o Estado estabelece as regras e princípios básicos que devem obrigatoriamente ser observados pelos agentes da atividade econômica. É nesse clima que surgem as primeiras leis protetivas do consumidor, as quais buscam restabelecer o equilíbrio nas relações de consumo como forma de garantir uma sadia ordem econômica.

O Direito do Consumidor, como tema de política pública, surgiu em 15 de março de 1962, com a mensagem do então presidente dos EUA, John Kennedy, enviada ao congresso americano, na qual preconizava a elaboração de uma legislação capaz de garantir ao consumidor o direito à segurança, à informação, à escolha e o de ser ouvido[3].

1.2 – Bases constitucionais

Aqui no Brasil, a Constituição Federal de 1988 previu a defesa do consumidor como um direito fundamental, previsto no inciso XXXII do artigo 5º. Também estabeleceu a proteção do consumidor como um dos princípios da Ordem Economia e Financeira do Estado, conforme previsto no artigo 170, inciso V, da Carta Magna. Além disso, o artigo 150, parágrafo 5º, determina o esclarecimento dos consumidores acerca dos tributos que incidem sobre mercadorias e serviços. No tocante à prestação dos serviços públicos, a Carta Magna, no parágrafo único, inciso II, do artigo 175, usando o termo “usuários”, diz que a lei deve dispor sobre os direitos dos consumidores de serviços públicos. Por fim, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou expressamente a elaboração do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e o da isonomia (art. 5º, caput) têm perfeita aplicação no âmbito das relações de consumo[4].

1.3 - O modelo de micro-sistema com normas de ordem pública e de interesse social

Obedecendo aos ditames constitucionais, o legislador ordinário elaborou o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Trata-se de um verdadeiro micro-sistema de proteção às relações de consumo, que, amparado em princípios próprios das ciências consumeiristas (art. 4º do CDC), atua em variados ramos do direito como: civil, criminal, administrativo e processual. As normas contidas no CDC são de ordem pública e de interesse social, conforme está expresso no artigo. 1º do código. Isso significa que o consumidor não pode abrir mão dos seus direitos e as partes não podem pactuar contrariamente ao que está previsto no CDC, salvo quando expressamente permitido e sempre dentro dos limites da lei, como, por exemplo, nas convenções de consumo (art. 107 do CDC). Em razão do caráter público das normas do CDC, pode o juiz examinar ex-ofício qualquer litígio sobre relação de consumo e não incide a preclusão, podendo as questões ser analisadas e decididas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição.

1.4 – Crimes contra as relações de consumo em outros diplomas legais

No âmbito penal, cabe esclarecer que não é só o Código de Defesa do Consumidor que tipifica crimes contra as relações de consumo. Também outros diplomas legais trazem no seu bojo infrações que podem afetar os interesses do consumidor e também as relações de consumo, embora não possuam o nomen iuris de “crimes contra as relações de consumo”[5].

O próprio Código Penal prevê uma série de crimes que podem atingir o consumidor e as relações de consumo, como por exemplo: art. 171 (estelionato), art. 175 (fraude no comércio), art. 272 (corrupção, adulteração ou falsificação de substância ou produtos alimentícios), art. 273 (adulteração de substância terapêutica ou medicinal) art. 274 (emprego de processo proibido ou de substância não permitida), art. 275 (invólucro ou recipiente com falsa indicação) e art. 280 (medicamento em desacordo com receita médica).

Também no âmbito da legislação extravagante há a Lei 8.137/90, que prevê os crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, a qual traz em seu artigo 7º o elenco de tipos penais referentes a crimes contra as relações de consumo. Ainda na legislação extravagante temos a Lei 1.521/51, que define crimes contra a economia popular, dentre outras.

Portanto, todas as infrações penais previstas no CDC e nas demais leis citadas podem ser tomadas para proteção das relações de consumo, podendo ocorrer, inclusive, a hipótese de concurso de crimes. Contudo, cabe esclarecer que, por força do artigo 61 do CDC, c/c artigo 12 do Código Penal, sempre que houver conflito entre as normas que tutelam as relações de consumo, a solução se dará pela aplicação do princípio da especialidade, isto é, aplicar-se-á a Lei 8.078/90 (CDC) em detrimento das demais, por ser esta uma lei especial.

1.5 – A polêmica em torno da tutela penal nas relações de consumo

Antes da publicação do Código de Defesa do Consumidor, ainda durante sua elaboração pela comissão de juristas encarregada da tarefa, inúmeras críticas foram feitas no tocante à inserção de normas de direito penal no corpo do CDC. Alguns diziam que se estava implantando um regime de terror ao prever a pena de prisão para empresários condenados por fraudes na venda de produtos[6]. Outros, como Alberto Zacarias Toron[7], ainda sustentam a tese de que os tipos penais previstos o CDC afrontam o princípio da intervenção mínima, segundo o qual somente as infrações mais graves e que não podem ser satisfatoriamente reprimidas por outros ramos do direito (civil e administrativo) devem ser criminalizadas. Em resposta a essas críticas, José Geraldo Brito Filomeno[8], um dos autores do CDC, aduz que: “as penas sugeridas para os comportamentos delituosos previstos são efetivamente para os ‘responsabilizados por fraude na venda de produtos ou prestação de serviços’, sim, e não para os fornecedores de bens e serviços que agem corretamente”. Eliana Passarelli[9], por sua vez, afirma que a adoção de sanções civis e administrativas não seriam suficientes para frear o impulso dos que violam o CDC.

De fato, primeiramente é preciso observar que o CDC é um micro-sistema que, através de um conjunto de normas sistematicamente organizadas, busca dar proteção a um bem jurídico imaterial supra-individual, que são as relações de consumo. Em última análise, visa garantir também a ordem econômica e financeira do Estado. Assim, o interesse coletivo prevalece sobre o particular. Também é preciso ter em mente que o consumidor individualmente considerado, devido à sua vulnerabilidade, ao seu desconhecimento e até mesmo em razão do pequeno prejuízo experimentado do ponto de vista individual, não teria interesse na punição de condutas que, analisadas de um ponto de vista global, causam enorme prejuízo à sociedade. Daí por que apenas a previsão de sanções civis e administrativas não seriam mesmo suficientes para conter a ação dos maus comerciantes.

Há, portanto, um caráter preventivo e pedagógico nas normas penais do CDC. Ademais, como bem salienta Antônio Memória, antes mesmo da elaboração do CDC já existiam normas repressivas inseridas no Código Penal e em Leis Esparsas (Lei 1.521/51 e Lei 4.591/64, por exemplo)[10], que tutelavam penalmente as relações de consumo.

1.6 – Conclusão

Portanto, a tutela penal das relações de consumo encontra amparo não só no contexto histórico da economia, como também na atual ordem econômica e financeira do Estado, onde a defesa do consumidor é vista como um meio de restabelecer o equilíbrio e a lisura das transações comerciais entre consumidor e fornecedor, com o fim último de proteger um bem jurídico imaterial e supra-individual que é a própria relação de consumo.

[1] Eduardo Gabriel Saad. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Ed. LTR, 5ª edição, revista e ampliada, p. 24.

[2]Wikipédia, A Enciclopédia Livre, Revolução Industrial, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Industrial#O_liberalismo_de_Adam_Smith, acesso em: 21/08/2006 às 21:00 h
[3] BARROSO FILHO, José. A tutela penal das relações de consumo . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2006.
[4] Marcus Cláudio Acquaviva, Vademecum Universitário de Direito, (Constituição Federal), 2003, Ed. Jurídica Brasileira.
[5] Marco Antônio Zanellato, Manual dos Crimes Contra as Relações de Consumo (Crimes Contra as Relações de Consumo), CENACON, Ministério Público do Estado de São Paulo, Imprensa Oficial. São Paulo, 1999, p. 279.
[6] José Geraldo Brito Filomeno, Código Brasileiro de Defesa Do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª edição, Forense Universitária, revista e ampliada até 2001, p. 604.
[7] Alberto Zacarias Toron, Aspectos Penais da Proteção do Consumidor, Direito penal Empresarial (Tributário e das Relações de Consumo) p. 14/5, apud, Eliana Passarelli, Dos Crimes Contra as Relações de Consumo, São Paulo, 2002, Saraiva, p.38.
[8] Ob. Cit. pg. 604.
[9] Eliana Passarelli, Dos Crimes Contra as Relações de Consumo, São Paulo, 2002, Saraiva, p.38.
[10] MEMÓRIA, Antonio Ricardo Brígido Nunes. O CDC e os crimes contra as relações de consumo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 89, 30 set. 2003. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2006.

Nenhum comentário: